Sebastião Salgado: O maestro da consciência indígena no Brasil

Sebastião Salgado era uma figura de extrema relevância para a cena indigena, para a cena artística e para a cena internacional. Perdemos um grande artista, que faleceu em Paris em maio de 2025, deixando um legado artístico sobre o mundo indigena e sobretudo sobre a Amazônia, sem precedentes. 

Poucos artistas conseguiram transformar tanto a realidade quanto a forma de vê-la. Sebastião Salgado foi muito mais que um fotógrafo, ele foi um filósofo visual da condição humana, um guardião das florestas, e alguém que ousou olhar de frente para a dor dos demais, sem jamais ter perdido a esperança na beleza e na dignidade alheia.

Os retratos em preto e branco, mundialmente reconhecidos, são sua marca registrada que percorreram guerras, migrações, florestas intocadas e aldeias ancestrais. Mas por trás de cada imagem icônica, estão as histórias pouco conhecidas. A sua história pessoal foi marcada principalmente por terra, suor, silêncio, e recomeços. 

O filósofo

Aimorés, no interior de Minas Gerais, foi onde sua vida começou, em 1944. Sebastião cresceu em meio à natureza da Mata Atlântica, cercado por rios, árvores frondosas e histórias do interior profundo do Brasil e passou das planícies de minas para as rotas do mundo. 

O artista não foi sempre fotógrafo, iniciou sua carreira profissional trabalhando como economista, mas na década de 70, pouco antes dos 30 anos de idade, quando decidiu mudar de profissão e dedicar-se à fotografia. 

Sebastião fez sua primeira fotografia aos 29 anos, em 1973. Até então, ele trabalhava para a Organização Internacional do Café, em Paris, viajando pela África em missões de desenvolvimento econômico.

A história é curiosa: quem comprou a câmera foi a Lélia Wanick Salgado, sua esposa. Ela queria estudar arquitetura e começou a se interessar por fotografia. Mas foi Sebastião quem acabou se apaixonando pela câmera — uma Pentax Spotmatic, que eles usaram durante uma viagem ao interior da África.

Essa viagem foi um divisor de águas. Ao ver como conseguia se comunicar profundamente com as pessoas por meio da lente, ele decidiu mudar de vida.

A Cratera Humana de Serra Pelada

Uma das imagens mais emblemáticas de sua carreira nasceu em 1986, quando Salgado chegou à Serra Pelada, no Pará. Ali, mais de 50 mil garimpeiros cavavam com as próprias mãos em busca de ouro, formando um formigueiro humano dentro de uma cratera de lama.

Ele subiu e desceu as escadas escorregadias, carregando várias câmeras. Dormiu mal, suou, se embrenhou no barro. Fotografou sem invadir — apenas observando e respeitando a cena. E o que captou foi épico: homens parecendo esculturas vivas, carregando sacos de 40 kg ladeira acima, envoltos em poeira, luz e barro. Ele sabia que estava diante de um momento histórico e brutal da exploração humana, e decidiu registrar aquilo com a mesma sensibilidade que tinha ao retratar campos de refugiados ou trabalhadores rurais.

“Ali, eu vi a força humana em estado bruto. Era como assistir à construção das pirâmides do Egito.”

As fotos rodaram o mundo. Mas poucos sabem que foi um risco pessoal e físico extremo — ele estava num território dominado pelo Exército, pelos conflitos de poder, e por uma multidão exausta, armada de picaretas e esperança. Ao contrário do que muita gente pensa, ele não pôde circular livremente entre os garimpeiros no início. A tensão era enorme, e os garimpeiros desconfiavam dos “estrangeiros” (mesmo brasileiros) que chegavam com câmeras e cadernos de anotações. Sebastião ficou dias no local, observando, ganhando a confiança dos trabalhadores, esperando a hora certa de clicar.

A Exaustão e a Cura pela Floresta

Depois de cobrir por décadas as maiores tragédias humanitárias — guerras na África, fomes no Sahel, campos de refugiados e migrações forçadas — Salgado ficou doente. Não apenas fisicamente, mas espiritualmente. Ele mesmo contava que sentia que “a humanidade havia perdido a alma”, e que estava exausto de tanta dor e destruição.

Foi neste momento que decidiu voltar, ao lado de sua esposa e parceira de vida Lélia, para a antiga fazenda da família, em Aimorés. Lá, quando chegaram, o choque foi grande: a antiga fazenda da família estava devastada. A Mata Atlântica que ele lembrava da infância havia desaparecido, só restava o solo árido, seco e muito pouca vida. 

Mas ao invés de desistir,Sebastião e Lélia decidiram confrontar o impossível e trabalhar na recuperação da propriedade. Foi então quando, com recursos próprios e ajuda de especialistas, criaram o Instituto Terra, que iniciou um dos maiores projetos de reflorestamento de Mata Atlântica no Brasil.

Ao longo de 20 anos, mais de 2,5 milhões de árvores nativas da Mata Atlântica foram plantadas ali e o casal pôde ver como o solo voltou a viver, os pássaros voltaram a piar e as nascentes secas ressurgiram. A terra morta se transformou em um santuário de vida. 

Salgado nessa ocasião também voltou à vida. Dizia que essa experiência curou sua saúde e sua alma. Foi a partir dessa cura que ele decidiu iniciar seu projeto mais esperançoso: “Gênesis”, uma série fotográfica sobre os lugares ainda intactos da Terra — povos indígenas, paisagens selvagens e culturas tradicionais que vivem em harmonia com a natureza. Uma verdadeira ode às culturas que vivem em harmonia com a Terra.

A Amazônia em Preto e Branco: Uma Oferenda aos Guardiões da Floresta

Entre 2013 e 2021, Salgado decidiu mergulhar num novo projeto: retratar a Amazônia como espírito. Visitou mais de 12 etnias indígenas — como os Yanomami, Yawanawá, Ashaninka, Zo’é — convivendo, escutando, pedindo permissão para fotografar.

A série “Amazônia” se tornou um tributo à floresta viva: suas árvores que parecem catedrais, seus rios que são veias, e os povos originários que resistem há séculos ao apagamento. Ele não foi à floresta para extrair imagens. Foi para oferecer respeito, escuta, reverência. Salgado sempre foi considerado pelos próprios indígenas como um aliado, um defensor. 

“Os indígenas são os verdadeiros guardiões da floresta. Se há esperança para a Amazônia, ela passa por eles.”

Nos anos 1980, Sebatião já tinha sido convidado por líderes indígenas e antropólogos para conhecer os Yanomami, um dos maiores povos indígenas da Amazônia, que na época estavam sendo gravemente ameaçados pelo avanço do garimpo ilegal.

Ele passou semanas com eles, vivendo na aldeia, aprendendo os costumes e sendo respeitosamente guiado sobre o que poderia ou não fotografar. Ele não falava a língua, mas aprendeu a escutar com os olhos e com o corpo. Essa experiência foi transformadora e influenciou profundamente o modo como ele passou a registrar a relação entre natureza e humanidade.

E o ponto mais marcante para ele foi perceber que os Yanomami não se viam separados da floresta, mas que de alguma forma eles se sentiam floresta. Essa vivência foi relevante e também plantou a semente do que viria a ser depois, o projeto Amazônia e este tributo à própria floresta. 

Êxodo 

Além dos projetos Gênesis e Amazônia, outro projeto icônico de Sebastião foi o projeto Êxodo, quando começou a notar um fenômeno cada vez mais visível, urgente e global que era o deslocamento em massa de populações.

No final dos anos 1990 as guerras civis, fome, colapsos econômicos e desastres ecológicos estavam forçando milhões de pessoas a deixar suas terras. Estas pessoas passaram então a tornar-se refugiados, migrantes, exilados e sobreviventes. Mas também eram famílias, mulheres grávidas, crianças, pastores, aldeões que tinham, cada um, um rosto, uma história, um silêncio.

Salgado decidiu que era hora de documentar esse grande movimento de seres humanos pelo planeta. Assim nasceu “Êxodos”, uma obra monumental. Durante o projeto, Salgado passou mais de seis anos viajando por mais de 40 países, registrando refugiados, migrantes, povos sem terra, deslocamentos forçados, que eram temas que ele conhecia muito bem como economista, mas quis vivenciar com a câmera.

Em algumas dessas viagens, ele dormia nos mesmos abrigos, comia a mesma comida, caminhava a pé por dias, dividia medos e esperanças com pessoas que haviam perdido tudo. Ele acreditava que não se pode fotografar o outro com verdade se você não compartilha, pelo menos um pouco, da sua realidade.

Essa ética da presença fez com que seu trabalho fosse respeitado e confiável, mesmo nos contextos mais difíceis.

Neste projeto entre 1994 e 1999, Salgado acompanhou tanto fatos históricos e marcantes para a humanidade como situações de pressão social, como os refugiados da guerra na Bósnia – Na Ruanda e no Congo, os camponeses sem terras no Brasil, comunidades indígenas deslocadas pela modernização e até judeus de volta à terra santa após décadas de exílio.

Foram milhares de fotografias tiradas em preto e branco, todas revelando não apenas o sofrimento, mas também a resiliência, a dignidade e a humanidade em movimento.

Lições de um Olhar que Não Usa Flash

Uma das curiosidades sobre a arte de Sebastião Salgado é o fato de que não utilizava flash em suas fotografias. Essa foi uma escolha pensada, não apenas por uma decisão técnica, mas também uma declaração estética, ética e filosófica, que revela muito sobre quem ele era, como via o mundo e como queria que o mundo fosse visto.

Salgado era conhecido por sua impressionante fotografia em preto e branco, de alto contraste e profundidade emocional. Mas um dos aspectos mais marcantes de seu estilo é a ausência completa de flash em suas fotos, mesmo em ambientes escuros, em zonas de conflito, em aldeias remotas ou dentro de abrigos precários.

Mas por quê?

“A luz que já está lá é a verdade daquele lugar. O flash impõe outra verdade. Eu prefiro esperar a luz certa chegar.” — Sebastião Salgado

Seu trabalho se deu majoritariamente utilizando apenas a luz natural, do meio-dia num garimpo, a penumbra de uma tenda no Sahel, ou a névoa úmida da floresta amazônica. Essa opção o obrigava a observar com paciência – muitas vezes esperando horas pela luz ideal, a aproximar-se com respeito – sem invadir o espaço das pessoas com um clarão artificial e a assumir os limites do momento, deixando que a sombra, o contorno ou o brilho construíssem a narrativa da imagem. Todo este cuidado se refletia em imagens mais íntimas, silenciosas e  poéticas.

Para Salgado, usar flash em certos contextos seria como levantar a voz em um momento de silêncio. Ele acreditava em que há situações — como a dor do exílio, o cansaço do trabalhador ou a intimidade de um ritual indígena — em que o fotógrafo deve se apagar para que o outro possa existir plenamente.

“Eu não chego para tirar uma foto. Eu chego para pedir permissão, escutar e, só então, fotografar.”

Comparado com o trabalho de outros artistas que utilizavam o flash como um elemento para uma proposta artística, seu estilo destacava. Diane Arbus – fotografia de moda famosa nos anos 60 por fotografar cenas estranhas e ocultas – usava flash frontal direto para fotografar pessoas à margem da sociedade americana, criando um efeito cru, quase desconfortável e propositalmente provocativo. 

Richard Avedon – fotógrafo por suas séries de retratos psicológicos a famosos como Marilyn Monroe e Bob Dylan – usava iluminação artificial controlada em estúdio para ressaltar as emoções dos retratados, muitas vezes com fundo branco. Seu foco era psicológico, teatral.

A luz de Sebastião, portanto, era mais que iluminação e arte  — era um gesto de humildade.

Um Olhar que Transformava

Sebastião Salgado nos deixou em maio de 2025, aos 81 anos, deixando para o mundo não apenas um acervo fotográfico de valor incalculável, mas também um exemplo de vida comprometida com a dignidade humana, com a verdade e com a Terra. Seu olhar atravessou fronteiras, guerras, florestas e tempos. Mais do que imagens, ele nos deixou sementes de consciência.

Seu legado vive nos rostos que ele revelou ao mundo, nas florestas que ajudou a replantar, nos livros que continuam a inspirar e nas causas que nunca abandonou — os povos originários, os trabalhadores invisíveis, os refugiados, os guardiões da floresta.

Em um tempo em que tudo parece efêmero, Sebastião Salgado permanece eterno — em preto e branco, mas profundamente humano.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *