Há livros que nos contam histórias — e há livros que nos atravessam. O Guarani, de José de Alencar, pertence a essa última categoria. Não apenas pelo seu enredo romântico ou heroico, mas pela forma como nos coloca diante de uma pergunta essencial: quem somos nós diante da terra que habitamos e dos povos que a habitavam antes de nós? Neste artigo, convido você a viajar entre palavras, florestas, símbolos e encontros — não apenas literários, mas também reais. É uma travessia entre mito e matéria, entre a ficção e as trilhas do turismo consciente.
Um Brasil de páginas e raízes
Publicado em 1857, O Guarani é um marco do romantismo brasileiro, uma das obras mais emblemáticas da literatura brasileira. Mas mais do que seu lugar na literatura, o que nos interessa aqui é sua potência de imaginação. José de Alencar não apenas escreveu sobre um índio chamado Peri — ele projetou um Brasil profundo, onde rios, árvores, amores e lealdades coexistem num cenário que ainda pulsa sob nossos pés. É esse Brasil mítico que ainda se revela, em fragmentos, nas aldeias, nas matas e nos gestos de quem vive em diálogo com a terra.
Para além da análise acadêmica, o que O Guarani nos oferece é uma lente. Um jeito de olhar o mundo natural e indígena não como cenário, mas como personagem. O romance desenha com palavras uma floresta viva — e a partir disso, nos convida a buscá-la com o corpo.
O Mestre por trás da obra
José de Alencar, um cearense, nascido em 1º de maio de 1829, se consagra como um dos maiores escritores do Brasil, com sua vasta contribuição para a formação da literatura brasileira. O mestre por trás do guarani marcou a história com um forte compromisso com a construção da identidade nacional, especialmente durante o período do romantismo, quando o Brasil passava por um momento de busca da afirmação própria como nação independente e na construção de sua identidade após a independência de Portugal.
Alencar inicialmente se formou em direito, porém, foi encontrar sua verdadeira vocação na arte literária. O cearense chegou a atuar como político, mas foi como romancista, dramaturgo e cronista que deixou seu legado mais duradouro para a história nacional. Além de O Guarani, também escreveu outras obras notáveis ao longo de sua vida como Iracema, Senhora e Diva, que ajudaram a tecer a trama artística do Brasil do século XIX.
José se destacou por seu profundo interesse pela cultura brasileira, especialmente a indígena, ele colocou especial esforço em sua arte na busca de um Brasil autêntico, principalmente em sua etapa fora do Brasil, que o impulsionou ainda mais em destacar as belezas do país em contraste com a idiossincrasia e arte europeia. Se inspirou nas lendas, nos mitos e nas tradições dos povos indígenas, uma vez que, na época, unindo-se ao grande movimento nacional para a valorização da cultura nativa como símbolo da identidade nacional. Ao contrário dos escritores europeus de seu tempo, que viam os indígenas como “selvagens” ou “primitivos”, Alencar os retratou de uma maneira mais heróica, idealizando-os como figuras de pureza, bravura e conexão com a natureza.
As paisagens que resistem: do livro ao chão
Muitos dos lugares descritos na obra, como a vastidão da Mata Atlântica e os rios caudalosos, ainda existem. Mas não basta enxergá-los com os olhos do GPS — é preciso ativar o olhar simbólico. Quando José de Alencar fala da floresta como refúgio, como templo, como corpo sagrado, ele nos sugere algo que comunidades indígenas já sabem há muito: que a terra não é fundo de cena, mas parente.
A Serra dos Órgãos, no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, ainda hoje oferece trilhas onde o silêncio fala mais do que as placas. Lá, entre bromélias e nuvens, é possível imaginar Peri saltando entre galhos, ouvindo o farfalhar das folhas como um aviso do invisível. É também lá que muitos guias, descendentes de povos originários ou ribeirinhos, compartilham saberes que não estão nos livros, mas em seus corpos e memórias.
Peri, o herói que atravessa o tempo
Peri é muito mais do que um personagem. Ele é um símbolo — e como todo símbolo, pode ser relido. Em sua coragem, em sua entrega, em sua relação íntima com a floresta, há ecos dos valores indígenas reais: a conexão com a natureza, o senso de coletividade, a honra que não busca medalhas, mas equilíbrio. É claro que a visão de Alencar é idealizada — mas ainda assim, revela uma admiração que merece ser desdobrada.
Hoje, em visitas a aldeias guarani no Sul do Brasil ou a comunidades do Xingu, encontramos traços dessa mesma integridade. Mas ela não se veste de capa heróica: ela se manifesta no cuidado com os mais velhos, na forma como a água é pedida antes de ser usada, no silêncio que antecede o canto. A bravura de Peri talvez more agora na resistência diária desses povos frente às pressões do mundo moderno.
Turismo como leitura encarnada
E se o turismo fosse mais do que deslocamento? E se fosse leitura em movimento, escuta ativa, tradução sensorial de obras como O Guarani? A proposta do turismo de experiência cultural é exatamente essa: sair da superficialidade das fotos e mergulhar em vivências que tocam a alma. Não é sobre ver, é sobre sentir. Não é sobre visitar, é sobre participar.
Museus como o Museu do Índio (RJ), aldeias abertas à visitação responsável, roteiros em reservas florestais com guias locais — tudo isso são formas de continuar lendo o Brasil com os pés. Cada caminho, cada sabor, cada canto, pode ser uma nova página. Ao caminhar por trilhas guiadas por anciãos, você escuta histórias que O Guarani apenas sussurra.
A crítica possível: do romance ao real
Mas é preciso também reconhecer os limites da obra. O Guarani romantiza o indígena, o transforma num ideal quase mítico — afastando-o, sem querer, de sua humanidade concreta. Peri é quase sobre-humano, o que pode nos afastar da realidade vivida por milhões de indígenas no Brasil de hoje. Eles não estão apenas em narrativas do passado: estão lutando por seus territórios, suas línguas, seus direitos.
Por isso, ao propor uma viagem inspirada em O Guarani, o Joy2Be propõe também uma releitura. Um convite para reconhecer o valor das culturas indígenas não apenas como inspiração, mas como fonte ativa de conhecimento, como mestres de outros modos de ser e viver. É preciso sair do livro e entrar na conversa.
O Brasil como personagem
A obra de Alencar nos apresenta um Brasil onde o som do vento carrega significados, onde cada folha pode ser um sinal, onde amar é também proteger. Esse Brasil existe. Está nas aldeias do Alto Rio Negro, nas rodas de conversa dos Guarani Kaiowá, nos rituais do povo Pataxó, nos grafismos que contam histórias ancestrais. Está também em quem se permite reaprender a ver.
Turismo, neste contexto, deixa de ser consumo e passa a ser comunhão. A visita se transforma em partilha. O viajante vira aprendiz. E a viagem ganha contornos de rito: começa no deslocamento e termina no coração.
Itinerários possíveis: entre páginas e paisagens
Se você deseja vivenciar o espírito de O Guarani, aqui vão sugestões que misturam geografia e imaginação:
Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ): trilhas em meio à Mata Atlântica, com guias locais e oportunidade de conexão profunda com a natureza.
Aldeias Guarani no Sul do Brasil: vivências culturais com cantos, rituais e partilhas conduzidas pelos próprios indígenas.
Museu do Índio (RJ): mergulho histórico e sensorial na diversidade indígena brasileira.
Aldeia Yawanawá (AC): para quem deseja uma imersão profunda em saberes ancestrais com foco espiritual.
Cada roteiro pode ser vivido como um capítulo. Cada encontro, uma nova interpretação. Viajar é também reler — e reler é reviver.
Um convite à escuta
Mais do que um tributo a um clássico da literatura, este artigo é uma proposta de reencantamento. Que O Guarani não fique apenas nas estantes ou nos vestibulares. Que ele se transforme em ponte: entre palavras e passos, entre o passado e o presente, entre o Brasil que foi imaginado e o Brasil que ainda se constrói.
Que cada um de nós seja também um pouco Peri — não no heroísmo idealizado, mas na entrega, na escuta e na reverência.
Porque talvez, no fundo, o que O Guarani mais nos ensina é que há outras formas de estar no mundo. E que algumas delas ainda nos esperam, entre o som do maracá e o sussurro das folhas.